Decidi começar na pureza
Procurei na profundeza do mar
Mergulhei. Para minha surpresa:
Aguentei uma década sem respirar
Passei pelo talude continental
Tirei doze meses para me organizar
Continuei em direcção à dorsal
E mais fundo senti as correntes mudar
Vi a flora abissal e a pressão aumentar
Onde neptuno forjou o tridente
Ouvi sereias chamar e cantar:
"Deixa a vista turvar, vais ver nitidamente"
Na cidade perdida, vi despertar
Rostos nos caminhos que percorri
Pudesse dizer, descrever, desvendar
Os monstros marinhos que lá conheci
Eram tantos e falavam-me de emoções
Mostraram-me que o ódio era um engano
Disseram: "nós somos só projecções
Apenas o fruto do espírito humano
A paz do medo e da volição
Um vestígio fugaz de simbolismo
Mas se, por ti, não for indiscrição
Diz-nos então: que te traz ao abismo?"
Eu desci na procura, hà uns anos
Mas entretanto acho que me perdi
Sinto que já corri cinco oceanos
E o que procuro não está por aqui!
Mas eu descobri que trago nas veias
O sangue do primeiro navegador
Guiando-me pelo choro das baleias
Passei para lá do cabo bojador
Foi revelador: fiz das marés um lar
Nelas fui vizinho do adamastor
Pediu-me um ano para me falar
Dessa doença benigna que é o amor
Ao vigésimo trimestre, fiz um desvio
Embarquei no holandês voador
Mas nos destroços do avião-navio
Não consegui sentir seja o que for
Pensei, reli e rescrevi as crónicas
Mas no fundo não as compreendia
Aproximei-me das placas tectónicas
Para ver porque é que o mundo tremia
Com seres da luz que avistei à distância
Aprendi a resistir sem resistência
Na escuridão mostraram a importância
E os segredos da bioluminescência
Na litoesfera ganhei paciência
Apurei o sentido de orientação
E já na direcção da consciência
Aperfeiçoei a ecolocalização
Foi inesperado, senti-me embalado
Familiarizado a presença distante
Sinto que estou demasiado integrado
Nesta violência tão reconfortante
O mundo silêncioso chama tão alto
Não me lembro de adormecer sem ouvi-lo
Tempestuoso, ele clama de assalto
E estou exausto de tentar impedi-lo
Todos os dias o deslumbramento
Desde que perdi de vista o farol
Há tanto tempo que não sinto o vento
Creio que já esqueci o toque do sol
A procura envolveu-me no escuro
Começo a pensar: quem tenho eu a culpar?
Sinceramente não sei que procuro
E receio que já não sei como voltar
"É normal que assim seja
São efeitos secundários da osmose
Quando a voz do mar nos corteja
Sem que se preveja a metamorfose
Como ninguém sabemos como é
Vaguear sem ter alguém que te acuda
E se quiseres, ao mudar a maré
Aproveitamos e damos-te uma ajuda"
E então agarrei-me às fendas branquiais
E de seguida eles nadaram na vertical
Passamos por corais hidrotermais
Saímos do abismo existencial
Para lá das fobias torrenciais
A temperatura foi ficando constante
Chegamos às águas superficiais
O azul foi ficando mais brilhante
De rompante vi o céu a surgir
A luz cegou-me momentaneamente
Respirei de alívio ao emergir
E senti o peito encher-se novamente