Mais um cigarro, o relógio já marca as duas e meia
Num velho bar familiar hoje a casa está cheia
Tento apagar a memória de uma semana feia
Quer tanto contar a história que me engana e golpeia
Numa estreia de um percurso que leva à morte ou cadeia
Em mim o grito do conflito onde a mente passeia
O seu discurso chateia nos pensamentos que em teia
Vou tecendo onde repito essa onomatopeia
Bem sei que o tempo sorteia dor é requisito
Corre na veia, nenhum corpo é infinito
E nas palavras gravadas estará tudo dito
Interpretadas por quem leia o nome inscrito no granito
Convicto na tarola que controla o que recito
Ao som de piazzolla que me isola e eu reflicto
Planeei, mas planos nunca estão isentos de imprevisto
E já nem sei a sucessão de eventos que nos trouxe a isto
É triste: não encontro a tristeza no spot certo
Julgado pela capa apesar de ser um livro aberto
Não prometi ser um menino bonito tentei
Mas já senti se não evito o delito falhei
É que hoje perdi-lhe o sentido meio tocado e perdido
Muito tempo calmo e contido, é um começo
Outro copo servido, não creio tê-lo pedido
O empregado diz-me: tome amigo, que esta vem sem preço
Porque estou tenso ou pelo menos assim lhe pareço
Que é uma forma de mostrar apreço
Eu agradeço
Levanto e brindo penso se realmente mereço
De braço suspenso ouço uma voz que conheço
"Como é que estás?" enquanto eu olho p'ra trás
"Já te esqueceste do que foste ou já não és capaz?
O ontem foi fugaz e estranho para não dizer mais
Mas saberás o tamanho da estrada por onde vais?"
Procuro sinais, olho em volta, mas não vejo ninguém
Quando percebo que a conversa é de dentro que vem
E diz-me "não tenhas pressa, que vai ficar tudo bem"
Pouso o whisky a tremer quando entendo é de quem
Noventa e cinco vindo do fim do tempo de espera
Quando fiquei sem a voz do puto que eu antes era
Quer a palavra sincera e no tom que mantivera pede
"eu sei que custa mas pelo menos considera"
Não respondo, não consigo, tudo parece girar
É o álcool a bater é o cansaço a falar
"não é, e ouve com atenção
Perdeste algo algures, ainda estás em negação"
?Tou-me a passar a contemplar uma alucinação
"p'ra começar, andas a sonhar com moderação
Estou aqui para impedir o erro e mudar a acção
Mas eu só te posso pedir e tentar mostrar-te a razão
Desde quando te satisfazes com insatisfação?
Tu antes querias revolucionar a revolução"
Tens os dias a culpar a intenção amadureceu
É que entre tu e eu a vida aconteceu
E não tens a experiência das largas marcas que ela nos deixa
Nem tens a consciência das portas que o tempo fecha
É que ele vai-nos mostrando a palma, traz calma, mas seja
De vez em quando qualquer a alma fraqueja
E ai de quem se queixa, arrisca-se a um bilhete no limbo
Braço esticado, preparado p'ra levar carimbo
Eu sei que a vida era boa hoje é o que eu persigo
E sim eu sinto-me à toa, daí falar contigo"
"Sei o quanto isso magoa, consciente do que implica
Que muita gente apregoa e não o pratica
Mas de cabeça quente tudo se intensifica
Tenta fazer algo de belo do pouco que fica"
"És muito novo para entender o que significa
Estou só a tentar lidar com situações pesadas
Percebo a intenção mas eu não sei se ela se aplica
Tu queres lembrar-me
De viver num conto de fadas
E vais ferir com ferros
Por ser com ferros que ferem
Porque é isso que eles querem
Se tu pensares é claro
Preferem distância enquanto as proferem
Só conferem que não vale a pena
Resolvê-las num disparo
E sim quero lembrar-te dos dias em que sorrias
De como vias os sonhos que no olhar trazias
Nem tudo é fácil na altura tu já compreendias
Pouco dormias eu sei que ainda te arrepias
Mas tu sentias e sentes que há um porto seguro
Se não sabias aprendes ele permanece puro
E no futuro será motivo de orgulho
Vá faz o telefonema anula a cena eu sei que dá
Há algo mais p'ra lá do que os anos ofereceram
E quando sais calado, pensam que te venceram
A temperança trará o silêncio que fará
Parte da apetência que a prudência treinará
Sem viver no passado não esqueças que eu existi
Sorri porque eu vou ser para sempre parte de ti
Onde mantinhas a sensatez, é por lá que eu ando
E vê se atinas de uma vez
A gente vai falando